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Textos

A numeração foi utilizada apenas para facilitar, não havendo qualquer hierarquia ou cronologia. Trata-se da reprodução dos textos como se encontram em meus cadernos de anotações e nos trabalhos finalizados e refletem a dinâmica de meu psiquismo, dos meus interesses, das minhas paixões. É sempre bom lembrar que são textos que, algumas vezes, reutilizo, portanto são editáveis, se adaptam ao propósito e ao espaço disponível no suporte.

Após a reprodução do texto, indiquei o título da obra em que foi utilizado.

 

1. A palavra anunciada

Descobri que tenho um livro pronto dentro de mim. Preciso apenas descascá-lo, como se fosse desfolhar uma cebola. Livro duro, livro de pedra, onde tudo está escrito como que cavado por um formão, uma matriz de xilogravura. E as palavras, quando surgem, se revelam precisas, preciosas. A única angústia é saber que há por aí analfabetos, gente que não conhece o código secreto das letras.

Obra: Clarice me disse (2011)

 

2. Enquanto escrevo passa um ônibus na rua

Longe de todas as padronizações, a vida nos impõe vivências e experiências fortes, sensações que precisam de explicação. E é aí que entra a arte. Só ela, com todo seu exagero, possibilita a transformação das experiências em sensibilidades. A pintura, como forma de arte, permite descrições detalhadas, rebuscadas, intensas como a própria vida. Enquanto escrevo passa um ônibus na rua, o que me faz pensar: para onde vão? Quem são? O que acabaram de fazer? Gosto de pensar estas coisas. E o que tudo isto tem a ver com a pintura que estou realizando enquanto escrevo? Pinto como se cada trabalho fosse uma página de meu diário. Embora, na verdade, nem tenha um diário. A arte me permite tais pensamentos, suposições, viagens. E se o espectador deste desenho for analfabeto? Só verá a mulher azul? Entenderá minhas angústias, meus pensamentos, tudo que digo quase sem querer?

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

3. A semente

Clarice me disse outro dia que não considerava perigoso pensar. Eu não disse nada. Não costumo discutir com ela. Mergulho a semente na terra e espero germinar. Ao fim de um tempo, um de nós terá razão. Mas não sou sempre assim, não com todo mundo.

Enterrei o pensamento perigoso e esperei. Meses, anos se passaram. Mas continuo discordando, não de todo. Corrigiria apenas: pensar, às vezes, é perigoso.

Obra: Clarice me disse

 

4. O construtor de coisas

Gostaria de escrever só com a mão: sem mexer no que ela escreve. Seria um jeito de não haver diferença entre o pensamento puro e a sua representação. Como tentaram os surrealistas com a pintura automática: o instante no seu próprio instante. Apenas o presente. Sem passado, nem futuro! O que é, é. E isso exige de mim uma total aceitação do acaso e sua sombra, que são os desejos secretos.

Mostro as coisas como elas são: isso não é uma camisa, é uma obra de arte. Isso não é uma escrita, é uma pintura. Eu não escrevo aleatoriamente, está tudo anotado num caderninho. Mas o que tudo quer dizer é que eu gostaria de viver num mundo onde todos pudessem deitar na rede, olhar as estrelas e sonhar.

Gostaria de escrever só com a mão: sem mexer no que ela escrever! A minha história, a minha memória, a condição humana. Estas são as minhas molduras, meu chassi, as tachas que me esticam e me prendem, o linho em que sou pintado. Seja qual for o assunto, a poesia o emoldura, o enquadra, o esquarteja e reconstrói, como um Deus distraído que solapa o mundo com maremotos e tufões e depois o refaz do nada. E sem que saibamos por que o mundo se torna melhor.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

5. A identidade que me tira do anonimato

A identidade que me tira do anonimato, não me protege: realiza apenas o seu dever de invadir aquilo que sou. Seria mais um na multidão se lá não estivesse escrito: Davi Bernardo, etc. Filiação: Germano e Miriam ... Nascimento: 20 de agosto de 1962. Naturalidade: Salvador/BA. Além da assinatura, um polegar meio gordo e um retrato que me mostra triste aos trinta e quatro anos. O que narro aqui de maneira enviesada e sem sentido é a passagem do tempo, a sucessão dos acontecimentos sobre a matéria, o processo contínuo. E que a memória não me falhe nunca. Mas agora façam silêncio. Preciso pensar. Preciso me organizar, ajeitar as flores no vaso sobre a mesa.

Obra: A identidade que me tira do anonimato.

 

6. Selvagem

Existem experiências que marcam a gente de tal forma que mesmo com o tempo a emoção não muda. Podemos até esquecer temporariamente, mas quando volta é sempre renovada. Há poucos anos, vi um deserto de sal. Tal qual um deserto de areia, o de sal impressiona por sua enormidade e silêncio. E é de uma brancura que dói a visão. Mas foi no deserto comum, cercado de camelos, que do nada encontrei um caco de azulejo. Uma amiga percebeu e me mostrou. Catou alguns, muitos, tantos quanto pôde, para transformar em mosaico quando voltasse para casa. E eu peguei um pequeno para mim, como relíquia. Não deve ser muito velho, talvez tenha 40 ou 50 anos, ou menos, mas estava ali aguardando a passagem do tempo, a transformação em areia. Estava no lugar certo. Agora o tenho comigo como um amuleto.

Obra: Selvagem (2011)

 

7. Oração

O futuro me espanta. Não como o passado, que só volta às vezes. Toda manhã quando abro os olhos vejo-o se aproximando. Contar o tempo é só maneira de enganá-lo. Repito calmamente: O senhor é meu pastor. Nada me faltará ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte. Não temerei não. Temerei? Estou aqui, agora que não será mais futuro, apenas um contínuo presente. Já não temo o que vem, nem esqueço o que acabou de acabar. O senhor é meu pastor, não me faltará. Deixo cada coisa em seu lugar, não gosto de mudar nada. É do meu signo ser conservador. Confio na minha incompreensão. Pressinto o futuro contido em cada palavra que ainda não escrevi. Está fazendo uma noite quente, mas é agosto e eu devia estar com frio. Algo está para acontecer, é dito no jornal. E no meu coração que não para de bater. O senhor é o meu pastor, não me espanta com seu futuro silencioso. A noite é quente e falta luz, mas espero o que virá.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

8. Perguntas

Resisto um pouco antes de continuar. Não será que já escreveram tudo, cantaram tudo, desenharam? Então, que estou fazendo aqui, agora que escureceu e estou triste? Não seria melhor simplesmente chorar, lembrar e relembrar pequeninos detalhes que fizeram a diferença, que alteraram o rumo, o desenho do rio no mapa? E, no entanto, o tempo todo Deus mostra que continua criando (longuíssimos sete dias). Toda hora aparece um cientista dizendo que nasceu tal estrela, tapou-se outro buraco negro, surgiu mais vírus aterrador. Será Deus maquinando mudanças no cenário ou já estava tudo criado e só agora é que conseguimos enxergar?

Obra: Resisto um pouco antes de continuar

 

9. De tudo que faço, metade é acaso

Muitas vezes ao dia, pergunto sem encontrar resposta: Pra que baratas? É difícil uma resposta que satisfaça. De tudo que faço, metade é acaso. E o que faço por instinto involuntário, posso dizer que fui eu mesmo que fiz? Quando pinto, respeito o material que uso? Sigo todas as regras do cânone? Abraço o acaso? Ou brinco de enganá-lo? Paro para tomar fôlego. Volto a pensar em baratas. Em formigas. E em tartarugas, camelos, avestruz. Fora o homem, tudo que vive é um escândalo. A minha aflição é saber que o mesmo Deus que me criou fez também as baratas, os morcegos, os tubarões, as minhocas. Os escorpiões, as cobras.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

10. O tamanho real

Lendo a paisagem da janela, vejo tudo em seu tamanho normal. O ônibus segue seu percurso e meus olhos, acelerados, vão somando coisas mais coisas. Asfalto, capim, gado, azul, marrom, gravetos, branco, cinza, árvores. Meu corpo guarda em suas células partes de minha história, da história de meus pais e avós. Em cada marca de vacina, em cada vinco, sinal ou cicatriz, escondo (ou mostro) as dores que passei, as vergonhas, as tristezas. Da minha infância, por exemplo, o que mais marcado ficou foi o inferno na escola. E a lembrança das férias na casa de meu avô, na roça. Da janela do ônibus que caminha lento na estrada, revejo a paisagem que me levava e trazia para a roça a cada verão: asfalto, capim, gado, azul, marrom, gravetos, branco, cinza, árvores.

Obra: Sem título (2010)

 

11. Cotinha

Minha avó tinha um nome incomum: Maria Azulina. Mas todo mundo chamava Cotinha. Era coisa do tempo. Hoje ninguém mais usa esse apelido, mas naquela época era comum. Foi o que mais me ficou na memória, esse estranho nome. Às vezes, na infância, pegava a identidade de minha mãe só para ler Filiação: Luis de França e Maria Azulina. Foi minha mãe quem primeiro percebeu a morte dela, depois de mim, claro, que eu nem estava dormindo ainda (ou estava e não me lembro?). Mas ela não fez estardalhaço, deve ter chorado escondida depois, num outro canto da casa da fazenda (como eu costumo fazer). Pegou o candeeiro na mesinha do lado da cama com a mão direita e com a outra me carregou. Deixou-me num outro quarto, com alguém cujo nome não recordo. E foi resolver as coisas, avisar meu avô etc. Um longo etcétera.

Obra: A família real, d’àprès Goya (2011)

 

12. Yayá

E não é que minha tia também tinha um nome incomum! Mas não tanto, só um pouco: Maria Eduarda. Não lembro nada do enterro de minha vó, mas de alguma forma me vem a lembrança dessa tia, única irmã de minha mãe. Possuía também apelido, lógico. Era Yayá. Tia Yayá. Que depois se casou com Manuel, teve três filhos, duas meninas e um menino, sendo que a mais velha morreu com três anos, quando eu tinha seis. Chamava-se Maria Auxiliadora (hoje também incomum), Nena. De sua morte lembro tudo, mas faço questão de esquecer. Brincávamos juntos em sua casa, em Brotas, até que ela adoeceu. Minha mãe foi lá me buscar, cheia de medo, mas não adiantou, também fiquei doente depois. Em poucos dias, faleceu e não pude me despedir, não deixaram. Por longo tempo, não sei quanto, repetia em minha cabeça, fato após fato, dia após dia, cada lembrança, cada detalhe, para não esquecer.

Não queria esquecer.

Obra: A família real, d’àprès Goya (2011)

 

13. Bidu

É tudo saudade dentro de mim: ruas de pedra, livros, aurora. Casaco preto, de cavaleiro, até o joelho, de meu avô. Casaco preto e cavaleiro, parados de manhãzinha, na neblina. Saudades que não findam nunca. O tempo, em sua perseguição, tomou-lhe os dentes: os da frente e os de trás. A cor. Os cabelos ralos. Não lhe poupou nada: músculos, pelos, adjetivos. Não foi amigo nem inimigo: apenas acompanhou a viagem. Armadilha? Guilhotina sedutora? Aeromoça com um sorriso no canto da boca. Quero uma lupa para ler o que escrevo. Linha após linha, falo de mim. Como se fosse um retrato, uma foto, um espelho. Meu diário roxo, como flor esquecida dentro de um livro velho. O sangue que corre nas veias é sempre o mesmo, mas vai lentamente mudando. A arte é como um diário que se vai escrevendo aos poucos, um diário como se fosse um lar, um abrigo, um porto seguro. Um caminho muitas vezes percorrido. Um rio novo a cada vez que se atravessa. Minhas palavras surgem, uma a uma, como uma corrente sempre igual e sempre nova. Afinal, não são iguais todas as palavras do diário e as horas do dia? Escrevo dia após dia, sabendo que depois farei daquilo uma obra de arte. E da minha arte minha vida. Hoje falo do meu avô como se dele fizesse um retrato. É minha forma de dizer que o amo. Sigo falando o que penso. E se não for verdadeiro sei que serei castigado. Porque aqui as coisas só têm valor se forem deste jeito: escritas com o sangue da orelha de Van Gogh. Ou da minha.

Obra: A família real, d’àprès Goya (2011)

 

14. Sonho e pesadelo

Minha mãe se chama Miriam, nome mais normal, bíblico. Foi ela quem disse que eu, de vez em quando, durante o restabelecimento da difteria, dizia conversar com Nena, minha prima morta. Não lembro. Mas tenho guardada em algum canto da mente uma tarde de domingo em que, depois do almoço, dormimos no mesmo quarto: Eu, meu pai e minha mãe (bem edipiano), eles numa cama de casal e eu no meu berço quase cama. Eu (não sei por que) dormia segurando a mão dela e tive meu primeiro pesadelo. Foi horrível como todo pesadelo, não recordo direito. Mas foi ai que aprendi o significado de sonho: – Não foi nada, relaxe, foi só um pesadelo. Mas era horrível. Já passou. O que é pesadelo. O contrário de sonho.

Obra: A família real, d’àprès Goya (2011)

 

15. Qualquer coisa

Meu pai sempre foi um homem difícil. Um intelectual, mas de temperamento bruto, rude, instável. Qualquer coisa, e o mundo vinha abaixo. Lembro de uma vez. Tínhamos de ir à praia todo fim de semana porque ele sempre gostou de mar. Neste domingo, cansado dos seus escândalos na rua, inventei que estava com dor de cabeça e fiquei no quarto, morrendo de fome, sem tomar o café da manhã. Estou com dor de cabeça. Então é melhor não comer nada, pois pode ser da barriga.Sim, senhor. É provável que ele não se lembre. Mas não foi a primeira nem a última vez que menti para evitar a vergonha dos seus ataques em público. Depois descobri que ele também gostava de inventar, esconder, omitir detalhes. Enfim, era um normal.

Obra: A família real, d’àprès Goya (2011)

 

16. Escadas

Desde sempre sonho com escadas. Estreitas, largas, compridas, redondas. Infinitas. Algumas chegavam ao céu, outras não tinham passagem para o andar de cima, aos poucos se transformavam em parede. Às vezes subindo, às vezes descendo. Mas sempre vou sozinho. Em um sonho, a escada era tão grande que descia com muita dificuldade, pois os degraus eram bem largos. Mas terminava numa grande piscina coberta, com a água morna, onde nadei tranquilo. E se não são sonhos, são pesadelos. Teve uma vez em que subi uma escada que ia ficando estreita aos poucos e dava num telhado de castelo, era noite e eu acordei gritando, pois acreditava que a qualquer momento cairia, mas não cheguei a cair, acordei antes. Já fiz terapia e contei estes sonhos todos, mas não adiantou muita coisa. Eles voltam periodicamente.

Obra: Escadas (2010)

 

17. Piapoba

Piapoba não era de ninguém. Apareceu na rua, alguém deu de comer e ele foi ficando, ficando. Ninguém sabe de onde surgiu com esse nome estranho. Era grande e manso. Feio. Mas tinha alma fina, alguma elegância inexplicável. Não se deixava escravizar pela comida como os gatos. Lá em casa comia quase todo dia, pelo menos uma vez. No início, meu pai reclamou, mas depois cedeu. Com seu jeito, conquistava todo mundo, mas não se prendia a ninguém. Às vezes sumia, só voltava três ou quatro dias depois. Quando morreu, Raquel chorou, eu chorei, todo mundo. Vai ver até meu pai chorou, não sei. Queríamos um cemitério de cachorro para ele. Minha mãe explicou que não havia. Tivemos de nos contentar com um enterro simples, num terreno baldio na esquina da rua. Deve estar no céu, porque não cometia pecado algum.

Obra: Clarice me disse

 

18. Retrato de Davi

Dificilmente a arte salvará a humanidade; se fosse para salvar, já tinha salvado. Então, serve pra quê? Não sei. Alguém sabe? Alguém está me ouvindo? Tem algum filósofo aqui? Só sei que, se depois de amanhã alguém ainda se lembrar deste pedaço de pano, serei um homem feliz, um pouco mais feliz. Mas... Como saberei? Não saberei? Não sei! Assim como não sei filosofia, astrologia, química. E também dirigir. Davi Bernardo nunca foi muito comunicativo e continua assim: fala pouco. Pensa muito. Gosta de sua solidão. Se pudesse, moraria numa casa com jardim. Cinco pessoas para ele é multidão. Gosta de ler, mas adora cinema. Mar, só no verão. Chuva, nem pensar. Muito menos dirigir. A coisa antiga que mais lembra foi uma inundação na fazenda do avô, quando tinha apenas 3 anos e todos ficaram ilhados. Passa um ônibus na rua onde moro. Não está vazio. Tristes faces se contemplam. Não posso saber o que pensam. Seguem rápido ao encontro do futuro. No instante em que escrevo com minha tinta laranja, morrem 3 pessoas do outro lado do mundo e outras nascem. Já disse que a arte não nos salvará. É um fato. Não o fez antes, por que faria agora?

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

19. Autorretrato

E não esqueça que aqui o ditador sou eu, dizendo o que é arte e o que não é. A minha responsabilidade só termina na sua retina, no fundo do seu olho. Daí em diante a culpa é sua. Por exemplo, este trabalho, um dia, pode parar na lata do lixo ou no fundo do armário de um museu. Aí pergunto: e você, o que fez com aquilo que viu aqui? Leu tudo direitinho? Guardou na memória? Esqueceu? Comentou? Criticou? Construiu?

Meu compromisso com a verdade me obriga a dizer: são oito horas, vinte e um minutos e trinta e poucos segundos, estou sentado numa cadeira azul e passa um ônibus na rua. Sei o que estou fazendo aqui enquanto a tinta verde desliza sobre o tecido branco: cutuco o espectador com vara curta, provoco-o, solicito novas emoções, interrogações, pensamentos.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

20. Cosmo

No princípio, o caos calmo de que é feito o cosmo distendia-se lentamente enquanto o que era e o que não era se espalhavam e resfriavam devagar. E, ainda assim, por dentro era tudo quente. Em italiano se diz caldo, que pra gente significa outra coisa, diversa. Mas afinal, o cosmo, nossa casa, não passa mesmo de uma imensa sopa quente de estrelas que está morrendo aos poucos? O que tudo quer dizer é que eu gostaria de viver num mundo onde todos pudessem deitar na rede, olhar as estrelas e sonhar.

Obra: Cosmo (2010)

 

21. Santo Antônio

Hoje, como em outros dias, amanheci pensando: quero me entranhar das palavras de tal forma que elas passem a ser minhas, como se tivesse registrado em cartório. Se milagres desejais, recorrei a Santo Antônio. Recupera-se o perdido, rompe-se a dura prisão. Pela sua intercessão fogem a peste, o erro, a morte. O fraco torna-se forte. E torna-se o enfermo são. E se eu não for verdadeiro, sei que serei castigado. Porque aqui as coisas só têm valor se forem deste jeito: escritas com o sangue da orelha de Van Gogh. Ou da minha.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

22. Spinoza

Buona Notte, signor Spinoza. O arrependimento é uma tristeza acompanhada da ideia de uma coisa que supomos ter realizado por livre decreto da alma. Já alma humana não é simples, mas composta de um grande número de ideias: morte e ressurgimento, fome e banquete, silêncio e axé, sede e oceano, cor e calor, voragem e coragem, eu e nós. A arte nada mais é do que um conceito mutante, como uma ameba que se divide ou um pedestal vazio, onde o que cair na rede é peixe, como um espelho vecchio que reflete tudo o que passa na frente. Enfim, uma experiência que alarga a compreensão do mundo agora e a sensibilidade do homem. A arte é como uma espécie de Aids: uma vez contaminado, não há cura, não há remédio. Não tem solução possível.

Obra: Spinoza (2003)

 

23. Os desejos secretos

Não sei o que estou fazendo aqui enquanto a tinta desliza lentamente sobre o tecido azul e penso na próxima frase. É curioso perceber a quantidade de pensamentos incoerentes. Penso na tinta, depois nas palavras já escritas e nas que virão. Poderiam ser: cometa, catástrofes, quadrúpede. Como se fossem fotos. Ou desenhos. Não me agrada o improviso. Davvero, non me piace! Gostaria de escrever tão rápido quanto o pensamento. O instante no seu próprio instante. Apenas o presente. Sem passado, nem futuro. O que é, é. Isso exige de mim total aceitação do acaso e sua sombra, que são os desejos secretos. Mostro as coisas como elas são: isso não é uma camisa, é uma obra de arte. Isso não é uma escrita, é uma pintura. Eu não escrevo aleatoriamente, está tudo anotado num caderninho.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

24. Toda arte

Toda arte é feita de simpatia ou do seu avesso. Peço um pouco de reflexão, um olhar cuidadoso e o espírito liberto. Para entender a arte que faço agora é preciso ler nas entrelinhas. Não é tão difícil quanto alguns querem fazer crer. È arte contemporânea, sim. Porque toda arte que se faz hoje é. No futuro serei apenas um artista baiano do século XXI. Deixarei de ser contemporâneo. Serei peça de museu. Escrevo claramente porque quero ser bem entendido: toda arte é feita de simpatia. Mesmo que não seja entendido, peço um pouco de carinho e atenção. É o que pede toda obra de arte.

Obra: Pintura Maximalista (2006)

 

25. Creio que você se enganou

Um dia escrevi: creio que você se enganou, como se quisesse dizer me enganou. Porque por muito tempo me senti assim. Aprendi coisas com meu pai e com Jesus Cristo. O primeiro me ensinou a consultar palavras no dicionário e como isso pode ser prazeroso. Lá encontrávamos o significado de fleumático, que é diferente de frio. Com o segundo, entendi que quem não ajunta comigo espalha.

Obra: Creio que você se enganou (2011)

 

26. Insone

O sr. D. gostava de espectar, palavra que dizia ter inventado e que derivaria de espectador. Parar distraído e observar: o dia que morre, a luz imperceptível da lua atrás das nuvens, o silêncio que é próprio da madrugada. Era assim que percebia a noite quando não lhe vinha o sono. Sentava na varanda, ao lado do cachorro que, hora sim, hora não, levantava a cabeça, olhava em volta, via-o distraído ou atraído por qualquer luzeiro de noite assim como esta e voltava a dormir, indiferente à insônia persistente de seu dono. Não era comum que ocorresse, mas vez por outra acontecia e não tinha o que fazer. Esperava o dia retornar e ia para o trabalho cansado. Não confiava em remédios.

Obra: Espectar (2016)

 

27. A neve

Esta noite sonhei com neve. Branca, muito estridente, incômoda. Via pessoas e animais caminhando tranquilos como se flutuassem, mas para mim era grande a dificuldade. Durou pouco, acordei suado. Havia esquecido de ligar o ar condicionado (dormi antes da hora, sem querer, de luz acesa). Nunca vi neve ao vivo, nem Papai Noel. O sonho é tirânico. Por que nele não temos livre-arbítrio? O homem é o animal que escolhe. E que sonha sem querer.

Obra: A neve (2011)

 

28. Mona Lisa

Mas a questão é que se hoje faz um pouco de frio, mais tarde fará calor de qualquer jeito. E isto me preocupa porque gostaria de conservar todas as coisas como estão, não mudar nada. O futuro dá um pouco de medo. Quanto tempo dura uma coisa? Esta caneta, este papel, esta casa, este mundo. Meu corpo. Quanto tempo? A minha dimensão é dos segundos, dos minutos. Não compreendo século. Milênio, então. Lá na frente, não sei quando, não haverá Monalisa. Nem mesmo as de Andy Wahrol ou Nelson Leirner, pensou Sr. D.

Obra: Livro aberto (2011)

 

29.  Salvador – Sábado – 27/02/2010

Os textos abaixo foram elaborados a partir de notícias do Jornal Correio da Bahia, do dia 27 de fevereiro de 2010, especificamente para fazer parte do livro de artista que integra a instalação Salvador – Sábado – 27/02/2010 :

 

Os verões de minha infância passei na roça, numa fazenda chamada Brejo do André (embora não houvesse mais nenhum André), entre São Sebastião e Terra Nova. Tinha um rio pequeno, sem nome, pasto, olaria, alambique e capela. A água que se bebia era da fonte e o fogão a lenha. Meu avô era feliz. E eu também.

 

O conhecimento da morte, essa senhora desgrenhada e inoportuna que não costuma bater à porta, chegou cedo demais para mim, quando não tinha completado ainda três anos. Foi com a morte de minha avó. Sua cama ficava perto do berço onde eu dormia e numa noite de poucas estrelas, ela partiu sem se despedir.

 

A verdade é que hoje acordei tarde, sem vontade de fazer as coisas que preciso. A verdade é que faz sol e calor e me sinto um bicho-preguiça. A verdade é que quanto mais eu rezo mais assombração me aparece. A verdade é que.

 

Exposto na vitrine do açougue, a peça de carne balança suavemente, cercada de moscas, no meio da tarde quente. Espera o comprador.

 

As palavras seduzem, não resta dúvida. É da natureza delas nos tirar o chão, fazer cambalear de leve.

 

A casa era branca, recém-pintada, reluzente, nítida. De esquina. Tinha duas salas, três quartos grandes e um pequeno para as tralhas, com janelas de alumínio e grades pintadas. A porta da rua era precedida de uma varanda com espadas de São Jorge plantadas num balde velho e onze horas que floriam em panelas velhas esmaltadas. Tinha cachorro grande e periquito. Era um sonho.

 

Meu irmão quase ganhou na loteria quando tinha treze anos. Marcou os jogos no cartão e pediu dinheiro a minha mãe, que não deu. Não acreditava em jogo. O resultado dos jogos ocorreu como previsto.

Já uma prima, essa ganhou mesmo. Mas o marido gastou mais do que podia e faliram.

E mais que isto: no fim, sem nada, ele se matou.

 

Dos super-heróis, meu sonho era ser Batman. Não para salvar os fracos e indefesos. Queria mesmo era pegar meia dúzia de colegas que viviam me perseguindo na infância.

 

Viver vinte anos com alguém é amor demais, além da conta, sem medida.

 

Dizem que se pode ver a muralha da China lá da Lua. Não sei se é verdade. Mas é uma imagem tão bonita quanto pensar em São Jorge perseguindo o dragão por lá.

 

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